18.12.06

Além dos Olhos


Era cega de nascença. Sempre que lhe perguntavam há quanto tempo estava cega, respondia: "É de nascença". Pelo menos foi isso que seus pais ensinaram que deveria responder, embora só compreendesse o que essa palavra significava muito tempo depois. Tudo o que sabia a respeito do mundo, das cores, das formas, sabia através dos outros. Sempre foi assim. Roupas, vestidos, calçados... Jamais tivera a chance de escolher por si mesmo aquilo que mais lhe agradava. Perguntava aos outros, sempre os outros. Estou bonita? Sim. Todos diziam que sim e para ela isso bastava. A imagem que a garotinha tinha de si dependia de outros olhos. Até que veio a escola e, com ela, as outras crianças. O maior defeito (e também qualidade) das crianças é que elas falam o que pensam, mesmo quando o pensamento é cruel. Via-se através dos olhares curiosos dos coleguinhas, que sempre a trataram como alguém diferente. E de fato ela era. Mas não gostava de o ser. Preferia passar despercebida na multidão, porém seu destino era justamente o oposto: seria percebida, sem perceber. Cresceu. Tornou-se uma moça. Seu prazer era colecionar elogios que lhe faziam. Seus ouvidos eram atentos a tudo, era mesmo capaz de memorizar até a entonação das frases que lhe diziam. E era seu contentamento quando diziam que era bela. Como queria ser bela! Devia ser muito bom ver algo belo, caso contrário as pessoas não dariam tanto valor à beleza. Se ao menos pudesse ver-se... Mas dependia dos outros. Eis o grande perigo: nem sempre os outros diziam o que pensavam. Adultos não são como crianças, e guardam os comentários cruéis para si, quase sempre. E mais freqüentemente ainda são indiferentes. E ela não entendia a indiferença: notava o silêncio daqueles ao seu redor deduzia: Estou horrosa mas ninguém tem coragem de me dizer. Sofria em seu mundo particular quando recebeu uma dádiva: um jovem se apaixonou por ela. Ele a chamava de "linda" e assim ela se sentia. Diziam também que o jovem era belo. Que orgulho ela sentiu! Era tão agradável a sensação que não se preocupou em mostrar a ele tudo de si. Graças a sua sensível habilidade de ouvir adquiriu gosto pela música, pelas palavras, pelas histórias que lhe contavam. Cantava docemente, fazia poemas. Disso ele nunca soube. Porque depois de um tempo o jovem se foi, deixando a ela apenas o silêncio. Ela sabia o que isso queria dizer. O silêncio. Foi quando chorou, copiosamente. Horas. Dias. Até semanas depois, suas lágrimas ainda fluíam, turvando-lhe a visão. Visão? Seria possível? Ela via? Sim! Não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas tinha certeza de que era algo diferente de tudo o que havia vivido até aquele momento. Percebia as folhas das árvores se movendo lá longe, o que antes só era possível quando as mesmas folhas tocavam sua pele. Ela via! Precisava de um espelho. Rápido! Teria muito tempo depois para conhecer o mundo. Que importava ver o universo todo, se não conhecia a si mesma? Rápido! Um espelho! Pronto. É agora. Um medo cortante percorreu seu corpo. Ergueu a cabeça e olhou diretamente nos olhos. Viu dois círculos de uma cor muito viva, que mais tarde lhe diriam ser da cor do oceano. Claro que não descansou até conhecer o mar, e achou maravilhoso ter no rosto porções da imagem mais fantástica que chegou a conhecer. Mas não foi só isso que viu quando se olhou no espelho pela primeira vez. Viu que os dentes eram bem brancos. Dava pra ver bem, porque não conseguia parar de sorrir! Viu os cabelos, a pele, o corpo todo, as formas. Era bela! Sempre que lhe diziam isso, acreditava. A diferença era que agora ela sabia. E isso mudou tudo.